PUNHADO DE NUS E AS SENHORAS OFENDIDAS

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Fui buscar o resultado de alguns exames de rotina. A recepção com aquele punhado de revistas antigas; a maioria Caras com páginas arrancadas. Quadros abstratos com fortes pinceladas e arranjos de flores artificiais.

Então adentrou a primeira senhora, de calça jeans e saltos altos; nariz em pé e cabelos muito bem pintados de loiro para disfarçar os fios brancos. A raiz entregava, não teve jeito. Sentou-se ao meu lado após entregar os documentos para a atendente que, muito da prestativa pediu que aguardasse um instante. Não sei se a primeira senhora tinha ido buscar um resultado ou se iria fazer algum exame ou algo do tipo.

Logo em seguida entrou a segunda senhora, negra, cabelo black, colar enorme em tom terra, brincos de madeira representando o contorno do continente africano. Deu bom dia e sentou-se de frente para nós (nós que eu quero dizer era eu e a primeira senhora, a de cabelos pintados de loiro, que a essa altura já estava folheando o jornal amarfanhado que estava sobre o balcão).

Mas é muita pouca vergonha, o mundo perdeu o pudor mesmo, começou a atacar olhando para a negra à nossa frente, buscando apoio; Imediatamente peguei uma revista de fofocas de pseudo celebridades da TV e comecei a fingir que estava lendo, evitando ler, é claro. Vai começar, pensei cruzando as pernas.

Como é que pode expor quadros com pessoas nuas tendo relações íntimas com animais e crianças?, continuou a loira. Ela se referia a uma exposição que fora censurada por uma instituição bancária que patrocinava a mostra de alguns artistas sobre o tema Diversidade. Eu soube, disse a outra. Fiquei horrorizada! Minha neta defendeu, ficou até sem falar comigo, me chamando de fascista e outras coisas mais.

A minha disse que eu sou nazi fascista, eu nem sei o que é isso, respondeu a loira. Mas continuo achando o fim do mundo.

A arte virou um farrapo, uma merda qualquer, arrematou a senhora negra de voz grave e potente. Desde quando o desenho de um pênis é arte?

Nem duro nem mole, é tudo maluquice, disse a loira.

Claro que se me contassem eu não acreditaria naquela cena, salvo pelo fato de que eu estava presenciando! O Smartphone iria me salvar, ele sempre salva, eu poderia fingir que estava navegando na internet ou ouvindo mensagens de áudio do whatsApp, uma atrás da outra. Mas quando fui puxar do bolso, a loira me cutucou.

Você não acha, meu filho?

Tem a estátua de Davi, ele está nu, quero dizer, a estátua está nua.

Mas aquilo é uma obra de arte famosa!

Mas também é uma vergonha!, disse a senhora negra.

Deveriam quebrar ou pelo menos esconder longe da vista de crianças e pessoas de respeito.

Aquilo praticamente nem é um pênis, eu disse e elas me olharam espantadas.

Não?, perguntaram.

É um pintinho, praticamente, todo fofuxo… Aqueles cabelos nem são pentelhos, são tufos angelicais, eu disse já arrependido por ter dito.

Fofuxo?, repetiu a loira.

Realmente, disse a negra. No meu tempo a arte era pra ser sublime. Não esse monte de maluquices que inventaram.

Depois dessa defesa esdrúxula daquela estátua pornográfica e dessas pinturas grotescas, só falta agora você querer defender essas cantoras que pensam que cantam, mas só sabem mostrar a xereca no palco!, disse a loira visivelmente irritada.

Nesse momento a atendente começou a rir e retirou-se correndo. Eu fiquei ali entre as duas, encurralado. As duas resmungavam. E agora? O que eu poderia fazer? Foi quando a atendente gritou lá de dentro: Uárlam! (Estou acostumado com a pronúncia equivocada de meu nome; alguns chamam de Eduardo, Halley, Wally, Uorlando, Wesley e por aí vai!) Levantei correndo.

Boa tarde, disse para as duas.

Peguei o resultado de meus exames e saí sem olhar para elas. No elevador me lembrei das imagens ditar pornográficas. Então me dei conta de que estava com uma revista Caras embaixo do braço.  Deixei com a recepcionista da portaria principal do prédio.

A atende da clínica tal pediu para entregar para a senhora, falei.

Ela mandou me dar essa revista?, perguntou a moça atônita.

Foi. Tenha um bom dia, eu disse saindo correndo.

Jamais seria capaz de retornar e enfrentar aquelas duas.

Deus me livre.

 

 

 

 

 

 

 

OS VELHINHOS DO MATATU

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Decidi pegar um ônibus.

Que como sempre demorou muito a chegar. Choveu, fez sol, choveu novamente e eu ali à espera do coletivo que mais parece uma lenda.

Chegou um velhinho de boné e camiseta branca, deu boa tarde a todos, que Deus abençoasse a todos. Tinha um bigodinho bem fininho rente ao risco do lábio. Por que será que alguns idosos deixar aquele filete de bigode? Por que não raspam logo tudo de uma vez?, me perguntei. Estava absorto nessas elucubrações quando veio o ônibus. Corri para pedir que parasse com medo do motorista levar adiante fingindo que não viu, como é costume de muitos deles. Eu estava atrasado para um almoço importante. Precisava correr. O sol abriu com toda força e esplendor. Eu estava banhado em suor. Todos do ponto correram para pegar o ônibus para Luis Anselmo, um bairro da região aqui de Brotas que carece de uma atenção maior com o transporte público (quero dizer privado). Havia dois vendedores mercando: um amendoim torrado e outro água mineral. Estratégia de venda casada?, me perguntei.

Comprei as duas mercadorias. Bebi a metade da garrafinha d’água e comecei a comer o amendoim com as mãos sujas mesmo. O que não mata engorda, diziam meus amigos sábios da infância. Pedi o ponto, uma senhora com várias sacolas pediu para o motorista parar antes, porque ela estava com muito peso etc. Não adiantou: ele parou muito mais adiante, no ponto certo. Mas era inviável que ele parasse onde ela pediu. O coletivo estava no meio da pista, se descesse ali poderia ser atropelada. Ela desceu se lamentando. O velhinho que dera boa tarde a todos nós anteriormente no ponto decidiu ajudá-la com as sacolas. Eu também.

Nunca mais faço isso, disse a velhinha apertando o lenço em sua cabeça. Percebi que ela tinha uma flor presa na orelha; daquelas amarelinhas, cujo nome esqueci mas encontra-se em tudo quanto é terreno baldio aqui em Salvador. Bela, belas.

A senhora está com muito peso, devia ter chamado alguém para ajudar, alguém de sua família, disse o velhinho do boa tarde a todos. Ele todo empertigado, ágil, cheio de si, com os documentos e uma caneta visíveis no bolso da camisa.

Se a senhora descesse ali poderia ter sido atropelada, eu disse segurando as sacolas muito pesadas lembrando que aquele atraso passaria para a história. Com que cara eu olharia para as pessoas? Devia estar que nem eu: morrendo de fome.

Onde a senhora mora?, perguntou o velhinho do boa tarde.

Moro ali depois da curca, disse a velhinha do nunca mais faço isso.

E eu no meio, morrendo de fome, banhado em suor e querendo adiantar logo aquela caridade. Meu Deus, por quê decidi ser caridoso logo agora?

Paramos para esperar o sinal abrir. Atravessamos a rua, estávamos numa encruzilhada; paramos para esperar a outra sinaleira abrir, caminhamos uns duzentos metros. o velhinho do boa tarde perguntou onde era mesmo a casa. logo ali, depois daquela curva. Chegamos. A casa da velhinha do nunca mais faço isso era a própria curva. Pediu que colocássemos as sacolas no chão, abriu a porta, agradeceu e entrou.

Não vai querer as compras?, perguntou o velhinho do boa tarde a todos, batendo na porta.

Ah, meu Deus, já ia esquecendo, disse a velhinha do nunca mais faço isso abrindo a porta e pegando as sacolas. Quase que eu pedia a ela pra entrar e tomar um suco e comer uns biscoitinhos.

Gente idosa é assim, uma atrapalhação sem fim, disse o velhinho do boa tarde a todos.

Pois é, eu disse alisando a barba.

Nos despedimos, desejei-lhe um ótimo domingo. Idem, aproveite o domingo meu filho, disse ele todo serelepe dobrando uma outra esquina e sumindo de minha vista.

Corri para tentar conseguir pegar quem sabe o resto do fundo das penelas, meu estômago rugia feito um leão.

Cheguei.

Estava esbaforido.

Foi tentativa de assalto?, perguntaram.

Não, não queria me atrasar tanto, eu disse buscando respirar fundo.

Ah, nem precisava, a lasanha ainda está no forno, ainda estamos preparando a sobremesa.

De boa tarde a todos. Sentei. Enxuguei o suor da testa com um lenço.

Nunca mais faço isso.

CARURU DA DIVER CIDADE

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Não comi o caruru.

Sairia tarde demais. Também não sou um fã ardoroso da iguaria baiana. Conheço gente que daria um rim para desfrutar do cozido de quiabos cortados com cebola, azeite de dendê e camarão. Mas havia a diversidade.

Recebi inúmeros convites para o evento Caruru da diversidade que aconteceu na residência dos estudantes da Universidade Federal da Bahia, no Corredor da Vitória aqui em Salvador. Promovido por alunos e ex universitários, e esse ano sob o tema Afete-se, a festa reúne toda uma gama de pessoas que se identificam com o universo Queer (me perdoem se errei o termo); além de falas sobre a importância da consciência pessoal e coletiva sobre os direitos individuais dos homossexuais, transsexuais, travestis, lésbicas, aconteceram apresentações as mais varias entre música, dublagem, performances, vídeos etc. Aproveitei para ver os amigos e colegas da banda Kiki e Os amores clandestinos, que foi objeto do documentário Kiki – O amor eu não sei, que fiz sobre o transformista baiano Kiki.

O caruru seria servido no começo da manhã – me contaram. Cheguei com um amigo que se hospedara em minha casa – Mathews Baldez é ator e está em uma montagem de um texto meu – Bílis negra – na capital do Maranhão, São Luís. Ele estava empolgadíssimo! Já passava das 23 horas. Kiki se apresentaria lá pela meia noite. Fiquei impressionado – e ao mesmo tempo a vontade – com o desfile de figuras das mais variadas cores, estilos, naquele grito de afirmação e sobretudo de atitude política frente ao estado de exceção que estamos vivenciando no Brasil. O pequeno palco de chão em estilo xadrez presenciou discurso de lésbicas, de viados, de bichas pretas, de monstras – um termo usado, se não me engano, para designar aquela espécie de drag queen que não segue os padrões de beleza das “divas” – e até de héteros. Isso me fez olhar mais atentamente enquanto aguardava a entrada de Kiki e banda. Um hétero pleno está em acordo com sua porção feminina e/ou masculina. É um encontro sagrado entre dois mundos que habita um só corpo.

Houve quem reclamasse dos excessos, dos discursos óbvios e batidos, sobretudo para um público que estava em conformidade com tudo aquilo, que fazia parte daquele propósito. No que concordo. Falar para uma multidão que está em acordo com o que dizemos é chover no molhado. Mas todo movimento é suscetível a exageros e descontroles. Afinal de contas protestos são apaixonados.

O que move um protesto é o assombro por algo que está errado, que é injusto, que não deveria estar naquele lugar. Ou sobre o que está fora dele. Daí pode gerar uma revolução.

Encontrei um sem-número de amigos e colegas de profissão e dos tempos da faculdade. Revi Tereza Skyper, criação de Noan Santos, colega da faculdade e dos tempos da montagem da peça Usina Conta Zumbi; revi Diego Alcântara e seus três metros de altura com sua Mamba Negra com aqueles lábios enormes de lindos numa performance deslumbrante. Revi Xica (de uma peça sobre uma trans (ou travesti?) baiana dos tempos da escravidão. Lembrei que parte daqueles tempos sombrios ainda está presente em 2017. Veio à tona uma conversa que tive com um amigo sobre identidade e afirmação pessoal e sobre um rapaz que vi em um ônibus: negro, gordo e afeminado. A antítese dos nossos tempos sombrios. Mas apesar de não ter o padrão que encanta a sociedade dominada por homens héteros, brancos e ricos (e congressistas e religiosos patifes), o rapaz parecia dono si, cheio de autoestima. Como Sonale Fonseca, Gabriel Carneiro, Moisés Rocha e Riam Santos,  produtora e atriz e integrantes da banda Os amores Clandestinos que são héteros e perfeitamente imersos naquele nosso mundo e em conformidade com seu eu feminino, gay, trans, lésbico. Como artistas que são. Como pessoas que são.

Parte do público presente parecia alheia às atrações e às falas. Uma pena.

Por falar em diversidade…

Você já tomou jambu?

Eu tomei.

Na cachaça.

Um amigo novo, cantor, lá de Belém (do Pará, claro) me ofereceu a bebida. Disse a Jeff Moraes que aquilo é um néctar dos deuses!, que nem a cachaça com raiz de umburana que tomei em São José do Paiaiá. Mas essa tem um gosto um pouco azedo e deixa os lábios dormentes e um tanto trêmulos. Que delícia! o caruru da diversidade foi isso: encontros, paixões sem escape, memórias, afetos, exageros, tropicalismo, bossa nova, rock, purpurina, dendê, beijos, amassos, timidez, olhares. e teve meu amigo Marcelo Ricardo, na organização do evento, naquela calmaria que lhe é peculiar. Que venha o próximo caruru. Com direito a tudo e todas.

E por uma cidade cada vez mais diversa. Sem nada a temer.

(Ah, soube hoje que o caruru saiu cedo, no começo da festa, por volta das 20 horas!)

Axé.

 

Foto: Pintura “gay family painting queer art 2 men with a child homosexual arts”, da Raphael Perez
https://www.artdoxa.com/users/raphaelperez/artwork_catalogs/5679-gay-family-paintings-homosexual-and-lesbian-families-painting/artworks/large?page=1#123984

 

 

UBER

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Estava atrasado.

Jamais me recordaria de que só tinha uma cédula de 50 reais na carteira. O compromisso devia ter começa há meia hora. Pedi um uber. O motorista já me esperava no local determinado pelo aplicativo. Saí do Engenho Velho de Brotas em direção ao Corredor da Vitória, teria um encontro com agentes de cultura no ICBA – Instituto cultural Brasil Alemanha – e não poderia me atrasar. Incrível, de tempos pra cá me tornei o atraso em pessoa. Uma deselegância inominável. Será a idade? Claro que não, conheço pessoas idosas que são pontualíssimas! Preciso sair mais cedo, sempre mais cedo e com calma, pensei enquanto respirava fundo e colocava o cinto de segurança.

Tem alguma rota preferida ou prefere seguir o GPS?, perguntou o motorista.

Prefiro seguir o GPS, eu disse. Porque se mudar a rota o valor sobe, afirmei com apenas 87,5% de certeza.

Claro que no horário de pico – o encontro seria às 18h e já era 19h! – eu pegaria a triste lentidão do trânsito de Salvador. E assim foi. Normalmente eu pergunto como está a praça, se a pessoa está conseguindo tirar algum lucro com aquele negócio, se a prefeitura ainda persegue, falo sobre a medonha e porca situação política do Brasil etc, etc. Mas preferi me calar, queria chegar logo.

Chegamos.

Mesmo seguindo o GPS o valor subiu mais de 6 reais. Abri a carteira e saquei a nota de 50 sem reclamar. Ele disse que não tinha troco. Descemos para tentar trocar em uma delicatessem próxima. Não trocaram. Compra uma água mineral pra ver se trocam, eu disse e ele respondeu que tinha água no carro. Calei.

Vou trocar lá dentro. Tem um café e o movimento é razoável, devem ter troco. Fui safado, pedi um menor – que custa 5 reais – na esperança de trocar o dinheiro. Fui safado novamente, só mostrei a cédula quando o café estava pronto e eu já tinha bebido um gole. Tentei pegar o telefone para fingir olhar qualquer coisa e assim me safar de olhar para a cara da atendente mas não teve jeito. Ela me olhou primeiro e disse que não tinha troco, botando as mãos na cintura, jogando a bomba em meu colo como quem diz: e então? Vai ter que desmontar!

Aí o inferno começou: o pessoal da reunião já tinha me visto e acenaram para mim. Pedi que esperasse com um aceno apressado. O motorista com aquela cara de gato quando quebra prato.

Vamos lá fora, vamos tentar trocar. Engoli o café e corremos pela avenida. Uma banca de frutas: ah, a salvação! O cara nem olhou pra mim, disse logo que não trocava. Aí me retei.

Sinto muito mas a culpa é sua, falei para o motorista. Você deveria ter troco para os clientes.

É que essa á a minha primeira viagem, eu só trabalho a noite senhor, ele disse visivelmente constrangido.

O senhor não prefere anotar meus números de telefone e pegar amanhã esse valor em minha casa? Eu moro ali ao lado da praça em que o senhor me encontrou, praticamente no Bar Copo Cheio, falei achando que ele iria aceitar.

É que eu estou pagando ainda esse carro usado que comprei para trabalhar, senão eu faria isso.

O senhor está achando que não quero pagar?, indaguei espantado.

Não, não quis dizer isso, ele disse enquanto andávamos pelo Corredor da Vitória. Parei dei meia volta, ele me seguiu sem entender nada. Vamos ao Bompreço, lá deve trocar, eu compro um pacote de ração para minha cachorra e te pago a corrida.

Vamos, ele disse conformado.

Mas o senhor vai me trazer de volta, sinto muito, falei com aquela arrogância de cliente ofendido e dono do capital, portanto do poder.

Fomos. Na entrada do mercado, avistei uma baiana de acarajé. Vou comprar um e assim consigo trocar o dinheiro, falei ao motorista. A essa altura já tinha me conformado de que iria pegar apenas o final de reunião. Usei a mesma artimanha do café: primeiro pedi o bolo de Iansan, mordi e depois entreguei a nota. O rapaz disse que não tinha troco.

Mas eu só tenho esse dinheiro, disse colocando um camarão na boca, que me espetou. Me senti castigado.

Furei minha boca, a senhora deixou a cabeça do camarão com o chifre, falei tentando colocar culpa nela e no rapaz do caixa. Consegui. Ele se desculpou e disse que iria trocar o dinheiro no mercado. Voltou com o troco.

Paguei ao motorista. Perguntei a ele como estava a praça e ele disse que não andava com dinheiro trocado por medo de assalto. Que noutro dia ele foi parar em uma boca de fumo e bandidos colocaram armas em sua cabeça querendo saber opara onde ele estava indo. Graças a Deus tudo deu certo e ele estava ali comigo mergulhado naquela confusão pelo centro de Salvador.

Como bom libriano que sou, para harmonizar tudo, agradeci, me desculpei, disse que ele fizera uma ótima condução, que o problema do troco atingia a cidade inteira, que aquilo era um absurdo, que ele não tinha culpa e que eu daria cinco estrelas a ele.

Paguei o café, depois de dizer que deveria sair para trocar dinheiro, que não podem jogar aquele problema para o cliente!

Sentei-me à mesa de reunião, cumprimentei a todos, me desculpei narrando o acontecido.

Se tivesse me dito eu te emprestava, porque tenho aqui, falou uma amiga poeta.

Tem o quê?, perguntei.

Troco.

 

 

 

 

 

DOIDINHO

 

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Ladrão que rouba ladrão não tem.

Mas os loucos sim.

Deus sempre perdoa os doidos, porque eles não fazem por mal. As sandices destoam do cotidiano travado a que estamos acostumados, cerceado por regras, leis e preceitos morais. O loucos não – quebram as regras e arejam o dia ao passar nu em frente à minha casa. Verdade. Uma senhora passou pela minha porta duas vezes completamente nua, rebolando, com as sandálias nas mãos. Com ares de Sônia Braga ou Sharon Stone na pele de suas personagens belas e sensuais. As vezes ela – que não sei o nome – passa gritando impropérios os mais variados. Isso altas horas da madrugada!

Ainda hoje, passeando pelo bairro com minha cachorra Liuba, me deparei com um deles – misto de doido e bêbado – levando grades de cerveja em um carro de mão. Com aquela energia incontrolável, misto de fúria e alegria, gritando e cantando dizendo que é o maior capoeirista do bairro. Parou para gingar um pouco, com golpes com as pernas sobre o carro de mão, como se aquele fosse seu adversário no belíssimo jogo da capoeira, nosso patrimônio imaterial. Não é que o danado sabe mesmo jogar? Tentei fugir, para que Liuba não invocasse com ele e vice versa mas não teve jeito: ele me viu, perguntou como eu estava, disse que meu pai é o maior cabeleireiro (barbeiro) do bairro (Ele e Elias, um barbeiro da geração de meu pai que fechou sua barbearia recentemente, se aposentou; meu pai é igualmente aposentado, mas prefere continuar na ativa).

Eles são assim: a doença os acomete no terreno do consciente; a inconsciência fica intacta, operando nas lembranças, na capacidade de não rasgar dinheiro, de se atentar com os veículos no trânsito e não morrer atropelado etc. Li isso em algum lugar e ouso falar aqui de coisas que não tenho certeza. Alguém me corrija se eu estiver errado.

 

Não estou aqui romantizando ou achando graça quem tem distúrbios mentais – creio que todos nós temos -, mas fazendo apenas um pequeno recorte daqueles que conseguem fazer algum gracejo e trazer encanto para o nosso cotidiano com suas tiradas incríveis, suas lembranças, a forma como bagunçam nossa ordem chatíssima estabelecida. Não posso deixar de denunciar certo descaso dos nossos gerentes (ou ingerentes) com a saúde pública em especial com os que sofrem de distúrbios mentais. Em todos os bairros essas pessoas lotam as ruas; estão por esquinas, pelos montes de lixo, confundem-se com alcoólatras e mendigos ou são isso tudo ao mesmo tempo. é uma tristeza ver tanta gente com a sorte traçada pela falta de interesse dos nossos representantes. Estamos todos, todos numa nau de loucos, todos no mesmo barco.

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Ou como disse a grande Nise da Silveira: “Para navegar conta a corrente são necessárias condições raras: espírito de aventura, coragem, perseverança e paixão“.

É preciso se aventurar,

É preciso ter coragem,

É preciso ter perseverança,

É preciso ter paixão, dona Nise.

E vergonha na cara para certos edis e chefes do Executivo.

Axé.

 

 

AMOR E OUTROS PÁSSAROS

…como a carne que se torna dura e tranquila com o passar dos anos.

Escrever sobre amor é falar sobretudo de todos. Do seio materno e das lembranças que não sei. Coisas dos antepassados, impressas na cadeia dos genes, em cada gota de sangue, na saliva seca e na pele que lavamos e sabemos finita. É essa coisa que não sei quê. Que sinto e você sente. E eu sou o arquiteto de apenas 41 edifícios: algumas casas pequenas, casebres e plantas riscadas no papel. Amor bate, volta e fica. Não, não fica, deixa duas ou três pegadas. São os carimbos da repartição pública da vida onde não se tem fila, apenas espera.

Amor é assim essa lembrança cotidiana que martela, é vinho fresco em garganta sedenta. É menor que a paixão fulminante, que se diz prazer e dor. Amor dói em calma, sem dedo em riste, é conformado, não mira em cima nem olha pra baixo. Fita o horizonte, não aprova nem desaprova. É mistério e compreensão.

Amor é um canto de pássaro ancestral, que ouço e sei o que é.

Sem nunca ter visto.