Itan 2 – POR QUE AS MULHERES NÃO PARTICIPAM DO CULTO DE EGUN?

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Em um dia muito importante, em que os homens estavam prestando culto aos ancestrais, com Xangô a frente, as Iyámi Ajé fizeram roupas iguais as de Egungun, vestiram-na e tentaram assustar os homens que participavam do culto.

Todos correram mas Xangô não o fez, ficou e as enfrentou desafiando os supostos espíritos. As Iyámi ficaram furiosas com Xangô e juraram vingança.

Em um certo momento que Xangô estava distraído atendendo seus súditos, sua filha brincava alegremente, subiu em um pé de Obi, e foi aí que as Iyámi Ajé atacaram, derrubaram e mataram a Adubaiyani filha de Xangô que ele mais adorava.

Xangô ficou desesperado, não conseguia mais governar seu reino que até então era muito próspero.

Foi até Orunmilá, que lhe disse que as Iyámi é quem haviam matado sua filha. Xangô quis saber o que poderia fazer para ver sua filha só mais uma vez, e Orunmilá disse para fazer oferendas ao Orixá Iku (Morte). E assim Xangô fez, seguindo a risca os preceitos de Orunmilá.

Xangô conseguiu rever sua filha mais uma vez, e pegou para sí os mistérios de Egungun (ancestrais).

Estando agora sob domínio dos homens este culto e as vestimentas dos Eguns, tornou-se estritamente proibida a participação de mulheres. Caso essa regra seja desrespeitada, provocará a ira de Olorun, Xangô, Iku e dos próprios Eguns.

Este foi o preço que as mulheres tiveram que pagar pela maldade das Iyámi, suas ancestrais. E assim é até hoje.

ANOS 90: EROTIC MADONNA, VÊNUS DE WILLENDORF E O COLÉGIO CIDADE DE CURITIBA

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 Ao olhar para trás, para os anos 90, quando eu tinha cerca de 17 anos ao falar de sexualidade, recordo das imagens da TV, das aberturas de certos programas que exploravam o nu feminino em larga escala. A atriz Isadora Ribeiro aparecera anos antes na abertura da novela Tieta totalmente nua; e durante muitos anos na abertura do programa Fantástico junto com outras modelos seminuas. Lembro também dos enlatados estadunidenses reprisados com veemência como Porky’s e seus semelhantes sobre adolescente que só pensam em fuder.  Me recordo do Colégio estadual cidade de Curitiba (um colégio estadual no bairro do Engenho Velho de Brotas em homenagem à capital do Paraná!) e da vênus de Willendorf que vi em fotografia num livro de História.

A estatueta é a mais antiga representação de um nu que se tem notícia. Especialistas dizem que não se trata de uma representação realista, mas de uma idealização de mulher fértil. Uma professora dissera que a imagem era uma distorção da figura feminina. E que era praticamente pornográfica, ao expor de forma acintosa as genitálias. Não achei a imagem distorcida e muito menos pornográfica, muitas mulheres e homens reais são assim, distorcidos ou não. E não seria pornografia sentar-se à frente da TV e presenciar a Isadora Ribeiro penetrando (!) os nossos lares com seus seios duríssimos ou mostrando a genitália na abertura da novela?

Genitálias e seios à parte eu preferia os da Madonna, que artisticamente causou espanto e perplexidade ao abordar a liberdade sexual em seu disco Erótica, de 1992. Nas décadas de pós-liberdade sexual, de hipocrisia e terrível medo da infecção pelo vírus HIV, o álbum e principalmente a postura da artista no clipe e no show causaram revolta e críticas as mais variadas. A que mais me chamou a atenção foi a de a artista seria “amoral”.

Moral é derivado do latim mores e tem a ver com comportamento. Amoral seria alguém que desconhece o comportamento social, os pudores da sociedade, os preceitos da civilização em que vive. Não acredito que a chamada rainha do pop não tenha compreendido a cultura da sociedade em que vivia naqueles anos. Creio que a Madonna entendeu tanto a sociedade de seu tempo, seus padrões hipócritas e pobres que resolveu fazer um convite ao rompimento desse “hímen” inquisitorial que se chama moralismo. Na letra, a artista criou a personagem de nome Dita, que nos convida a um momento de erotismo, orgia, de prazer:

My name is Dita

I’ll be your mistress tonight

I’d like to put you in a trance.

A partir daí, adentramos em um mundo repleto de figuras do imaginário erótico e pornográfico. O planeta dos fetiches, da quebra das convenções, dos conceitos e pré-conceitos. Uma das imagens do clipe é de alguém chupando o dedão do pé de um dos atores/bailarinos. Não lembro se é a própria artista ou uma dançarina. Não importa, a imagem naquela época era (e ainda é, pouca coisa mudou nesse assunto) no mínimo interessante naquele videoclipe em preto e branco. Chupar o dedão dos pés não é nada em se comparando a pessoas que pedem que lhe enviem pelo correio meias e cuecas sujas. Esses fetichistas se masturbam e devem sentir prazeres inenarráveis cheirando as meias de chulé e as cuecas sujas pelas partes pudendas só Deus sabe lá de quem. Tudo humano. Ou o nosso lado animal?

Coisa do Diabo? Algo anormal? Não. É humana a depravação. São humanos os fetiches. É humano o desejo e a criatividade. Oscar Wilder disse certa vez que “a arte é amoral”. A arte não precisa se preocupar em fingir o que não é, não se preocupa com preceitos e convenções. O oposto disso fez Madonna em seu disco e videoclipe. Abriu uma portinha e mostrou um mundo que é o nosso, era o meu quando eu tinha 17 anos e queria comer qualquer coisa que se mexesse. Madonna acabou também por transformar o sutiã (do francês soutien) em um acessório de desejo, algo fetichista, praticamente uma obra de arte, aqueles famosos pontudos e um preto brilhante no show Erotica.

Não sou um fá ardoroso da artista estadunidense, mas quando penso em sexualidade nos anos 90, os anos da Guerra do Golfo, do Bush pai, da nova ordem mundial, do Itamar, do nascimento do Real, do surgimento da internet, das câmeras digitais e da popularização do crack, eu lembro de seu erotismo, de seu despudor, de suas polêmicas, de sua coragem e de sua postura. Anos se passaram e muita coisa ainda continua sendo um tabu. Ao passo que muitos comportamentos já são aceitos. A Madonna, tal qual o escultor da vênus de Willendorf, remaram contra a maré, foram amorais, não por desconhecerem os valores da sociedade em que viveram, mas por romper, através da arte, a barreira desses ditames. É como se a buceta, o cu e a pica dissessem: estou aqui. Como se os desejos mais reprimidos, as fantasias mais delirantes gritassem: me deixem sair! Me deixem devorá-los!

Erotic vênus.

 

OXALÁ, JORGE AMADO, MONTEIRO LOBATO e pró MARIÁ DO ENGENHO VELHO

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Eu queria falar de um itan (uma história tradicional que faz parte da mística e da cultura iorubá) sobre Oxalá, orixá funfun, orixalá, do branco e da paz. Mas estava conversando com um amigo sobre literatura, a conversa descambou para o racismo na literatura; aí Monteiro Lobato baixou no terreiro. Aquela história medonha em que ele chama tia Nastácia de “macaca de carvão” dentre outros epítetos racistas e tenebrosos. Além de racista, Monteiro era eugenista.  Sempre fui fã da literatura de Monteiro, inclusive fui alfabetizado lendo os livros dele, em lições que a professora Mariá (uma negona alta e corpulenta que vez ou outra vejo no Engenho Velho e nos cumprimentamos com doçura) tomava todos os dias final de tarde. Ai de quem não soletrasse ou lesse tudo direitinho: Nê-á-si, Nas; tê-á-,tá; cê-í-, ci; á; Nastácia. Claro que naquela época passava batido o discurso do combate ao racismo, a mediação de leitura e a formação de professores para esse tipo de discussão em sala de aula. Meu amigo se mostrou horrorizado e decepcionado com Monteiro e Jorge Amado. O primeiro pelos motivos óbvios e já citados. O segundo em especial pelo livro Gabriela, Cravo e Canela; primeiro pelo título, que coloca a mulher como objeto e coisa comestível (acho que foi isso) e segundo pelo enredo, que a coloca como objeto sexual (acho que foi isso).

Argumentei que não, que Jorge coloca as mulheres negras e comuns como heroínas e donas de seu destino; que ele mostra que a mulher é dona de si, que pode escolher com quem se deita e ama. Disse que entendia Gabriela como uma força da natureza, que não contém em si os julgamentos estabelecidos pela sociedade nossa hipócrita, que abafa o desejo em detrimento das convenções sociais. Que mesmo casada, ela decide transar com Tonico. “Eu nasci assim, eu cresci assim/ eu sou mesmo assim/ vou ser sempre assim/ Gabriela, sempre Gabriela”, ponderei citando os versos de Dorival Caymmi que tão bem retratam aquela personagem. Lembrei que Jorge era comunista, amava, andava entre e escrevia sobre os despossuídos, o povo, a gente comum, os colocados à margem pela sociedade capitalista e injusta.

Rimos muito, chamei ele de “dramática”. rimos de novo.

Sobre Monteiro a conversa foi mais chata, afinal de contas eu acho que os livros não devem ser proibidos, mas discutidos em sala de aula, que precisamos de professores fortes e atentos para as discussões; precisamos de leitores em sala de aula formando novos leitores e discutindo esses temas escabrosos, terríveis mesmo. O preconceito, o racismo, a homofobia, o machismo e a hipocrisia, além de política e direitos do trabalhador a meu ver devem ser sempre os temas principais em discussões em sala de aula. Respeitando a pluralidade de opiniões e “opiniães”, tendo o professor como mediador dono também de suas ideias e opiniões. Todos tomando partido e formando o conhecimento. Os escritos de Lobato devem ser entendidos à luz de seu tempo e dos nossos dias. Um contraponto, uma crítica, um espanto, um assombro e um deleite. Como foi a conversa que tive ontem com meu amigo via whatsApp.

Consigo ter uma leve ideia de como deve ser ruim para uma criança negra (mas também uma criança branca, porque vai formando um pensamento péssimo sobre a outra pessoa por causa da cor) ler aqueles termos medonhos nos livros de Lobato. Sou contra as notas das editoras porque guiam o pensamento e a leitura sem uma reflexão crítica, além de “entregar” a história e seu enredo, fazendo perder o encanto da surpresa. Isso em minha modesta opinião é arte para o professor. Tocar nos assuntos espinhosos e desagradáveis.

É isso a vida.

Quando topar com professora Mariá pelas ruas do Engenho Velho vou perguntar se ela lembra das lições com os livros de Monteiro. E o que ela acha do escritor racista e eugenista. Espero que renda um bom papo.

A vida é isso. Também.

 

(A charge nessa postagem é de Quinho, encontrada na internet)

PABLLO VITTAR E AS COISAS DE OUTRO MUNDO. OU MORTA TRÊS VEZES.

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Existe uma polêmica envolvendo Pabllo Vittar.

Existe uma polêmica envolvendo Pabllo Vittar.

Existe uma polêmica envolvendo Pabllo Vittar.

Acontece que eu não sabia quem é esse artista. É tanto artista que aparece que não tenho tempo para processar todo mundo. As pessoas ouvem e comentam, mas ao ouvir por acaso que existia uma polêmica envolvendo Pabllo Vittar, eu pensava se tratar de algum cantor de música sertaneja ou coisa à margem dessa denominação. Nunca me preocupei em olhar uma foto ou baixar uma música.  Mas não adianta fugir. A coisa sempre te pega.

Me pegou quando vi uma postagem de um amigo internético que mora em Londres. Ele fez um vídeo falando sobre quem? Ele mesmo, o cantor, compositor e drag queen Pabllo Vittar, com dois élis e dois tês, ou dois lês e dois tês. E dizia no vídeo que quem não conhece Pabllo Vittar é de outro mundo. Aí me senti tocado e literalmente de outro mundo. Como assim? Disse a ele em off que não conhecia Pabllo Vittar, mas o respeitava como artista, como respeito qualquer artista desse nosso país bandalho; Que soube vagamente de alguma polêmica envolvendo o cara, pessoas tentando desqualificar seu trabalho etc. Um horror. Cada qual come o que gosta.

Ou o que tem pra hoje.

Dei um gúgol e fiquei surpreso quando apareceu a Madonna. Não a mãe de Jesus, mas a cantora, a maior pop star, a material girl. Então olhei noutras imagens e vi que o Pabllo Vittar quando montado é a cara da Madonna!

Eu acho!

Já estava pronto para pensar que tudo não passava de uma jogada de marketing da madonna, que ela é na verdade Pabllo Vittar, que precisa aparecer e certamente estaria planejando fazer algumas apresentações aqui no Brasil.

Ledo engano.

É que as loiras são muito parecidas. Eu acho. E Pabllo Vittar montada fica a cara da Madonna. Pelo menos no clipe de uma música chamada Open bar e noutro onde ele aparece em um ringue de lutadores. A música se chama K.O.

“Seu amor me pegou
Cê bateu tão forte com o teu amor
Nocauteou, me tonteou
Veio à tona, fui à lona, foi K.O.”, diz um trecho.

Um negócio meio adolescente. Com aquela batida que pega, com aquele bate cabelo que pega, com aquelas caras e bocas. Com mais uma pitada de sexualidade. Tudo pega. Ótimo. Particularmente fico feliz em ver artistas brasileiros fazendo sucesso. Cada qual come o que gosta.

Finalmente eu conheci Pabllo Vittar. E tudo continuou normal. Como haveria de ser. Agora faço parte desse mundo. Agora eu sou eu e um outro eu também, após essa inusitada experiência musical e babadeira.

Diz que a polêmica envolve também uma tal de Anita. perdão, é com dois tês. Essa Anitta fez um videoclipe com o Pabllo Vittar. Não assisti. Soube que teve não sei quantos milhões de acessos.

Meu amigo de Londres disse que estava “morta” quando eu afirmei que não conhecia o Vittar, mas conhecia o Escobar. Agora conheço ambos, pelo menos das notícias e da tela do computador. Em breve tentarei conhecer a Anitta. Que nem sei quem é. Se cruzar comigo na rua passa batida.

Morta três vezes!

 

 

 

Yansan e Ossãe – Itan 1

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Esse itan, aqui adaptado por mim originalmente para o espetáculo Usina Griô, do Grupusina de Teatro, do qual faço parte. Foi uma pesquisa que fizemos sobre a mitologia dos orixás do candomblé e resultou naquela encenação.

Desde sempre, Ossãe conhecia o segredo de todas as folhas; quem lhe deu esse dom foi Olorun, o criador supremo de tudo o que existe.

Por isso, Ossãe se gabava e se aproveitava de seus poderes. Quando um de seus irmãos orixás ia em busca de uma folha para curar um de seus filhos, Ossãe sempre criava um obstáculo:

– Venha amanhã! Estou muito ocupado.

– Você quer folhas numa hora dessas? Estou com sono, venha depois.

– Você não avisou que vinha. Não posso te dar folha nenhuma agora!

Os orixás começaram a ficar intrigados com aqui, ficaram muito zangados porque seu irmão Ossãe lhes negava vez ou outra as folhas e somente ele sabia o segredo delas. Então, a pedido de Xangô, deus do trovão, eles se reuniram para resolver a situação.

Isso não pode ficar assim!, disse Xangô soltando fogo pelas ventas. Nosso irmão sempre arranja uma desculpa para nos humilhar quando precisamos das folhas!

Ontem mesmo eu precisei de algumas folhas para curar uma doença de um filho meu e não consegui porque ele disse que já era tarde!, disse Oxum revoltada.

Mas foi nosso pai Olorun quem deu o segredo delas para ele, Ele sabe o que faz!, disse Iansan.

Mas ele tem a responsabilidade de dividir as folhas com a gente, somos seus irmãos e irmãs!, disse Oxóssi.

Xangô teve a solução: pediu que Iansan fosse até o local habitado por Ossãe e pedisse a ele que dividisse com todos os segredos das folhas. Iansan era hábil com as palavras, saberia negociar muito bem.

Iansan assim fez, concordando com a ideia de seu marido Xangô. Chegando à porta da habitação de ossãe, pediu agô!

Iansan –     Ê Ê ewe ô!

Ossãe –      Eparrei!

Iansan –     Agô Ossãe

 E então, o que quer de mim minha irmã?

Meu irmão, vim te pedir agô, licença, e trazer um recado de nossos irmãos. Todos estão zangados porque você se nega muitas vezes a nos dar as folhas que precisamos para atender os pedidos dos nossos filhos humanos, a quem cuidamos e protegemos. Nos reunimos e decidimos que eu deveria vir aqui te pedir para que divida com todos nós o segredo das folhas, assim não precisaremos mais te incomodar.

 

Ah, dito isso, Ossãe se revoltou, ficou furioso.

Jamais! Quem me deu o segredo das folhas foi nosso pai Olorun. E eu não dividirei com ninguém. Nem hoje e nem amanhã! Portanto pegue seu caminho de volta minha irmã e dê o meu recado.

Ah, quando ele disse isso, tão cheio de si e de orgulho, Iansã ficou revoltada com a desfeita. Sacudiu sua saia, provocando uma ventania e um redemoinho tão grande que abarcou todas as folhas de todas as árvores de todas as florestas; todas as folhas se desprenderam dos galhos e se misturaram. Ossãe ficou aflito, corria para lá e para cá gritando Ewê ô! Ewê ô!, que significa Oh, folhas, Oh, folhas! Mas as folhas não obedeciam mais o seu comando, eram levadas pela força dos ventos de Oiá, a rainha dos ventos. Então os orixás vieram e cataram as folhas, cada qual de acordo com sua personalidade e finalidade. Exu por exemplo pegou urtiga e outras mais ardidas; Oxóssi pegou alecrim e manjericão, Ogum a que mais se parecia com sua espada; Yemanjá as que se pareciam conchas e assim por diante. E foram embora.

Ossãe ficou muito triste com o que aconteceu e decidiu ir pedir desculpas a seus irmãos.

Meus irmãos… Quero pedir desculpas a vocês. Nosso pai Olorun me deu o segredo das folhas, mas eu deveria dividir com vocês e não negar como fiz.

Assim, surgiu o mais velho e mais sábio dos orixás, Oxalá e resolveu a questão.

– Meus irmãos, nós precisamos das folhas, mas somente Ossãe conhece bem o segredo de todas elas. Ele continuará sendo o guardião delas e toda vez que um de nós ou algum humano precisar de alguma, terá de pedir agô, pedir licença a Ossãe., disse Oxalá.

– E se algum humano não me pedir agô, licença, a folha não terá efeito algum.

 

Todos concordaram e disseram em voz alta:

Kosi ewe kosi orixá!

Sem folhas não há orixá!

Menina, boneca e travecona

Devia ter pego hum táxi.

Mas quiseram os deuses que eu pegasse um ônibus. Me arrependi. Sentei no fundo do coletivo – era o único lugar sobrando. Três estudantes ao meu lado. Elas sorriam e a queixavam do sol forte. Uma delas punha um capote sobre o rosto. Em meio aos solavancos elas riam e falavam de coisas que eu não entendia nem queria entender. Não era da minha conta. Mas a certa altura começaram a falar de alguém.

Pensei que fosse bicha baixo astral, disse uma.

Não menina, respondeu a outra como quem descobriu a uma nova ilha. Ele é bem educado, apesar de ser bicha.

Mas é travecona não é?, disse a terceira arrematando o diálogo surreal.

A essa altura tive vontade de me intrometer na conversa e dizer o quanto é lamentável ver mulheres falando de um homossexual -foi o que supus, mas poderia ser uma mulher trans, um travesti, um transformará uma pessoa não binária ou qualquer termo que talvez eu tenha esquecido aqui ou não saiba por simples ignorância. Dizer que mulheres possuem todo um histórico de maltratos e sofrem todo tipo de agressão de diversos agentes da sociedade. Inclusive por parte dos maridos que amam. Dos pais que amam. Dos namorados que amam etc.

Mas me calei.

Por falar em boneca, Dayse só quer uma boneca preta, disse uma delas indo de um assunto a outro.

Eu acho lindas as bonecas pretas. Sou doida pra ter uma, falou a do capote no rosto.

Nosso ponto, gritou outra pegando as sacolas que estavam no chão. Desceram. Sentei no lugar delas. Ainda pude olhar para elas andando em sentido contrário ao ônibus. Eu estava assombrado e desiludido.

Uma mulher entrou vendendo balas de gengibre. Nos chamou (nós passageiros) de abençoados. E que Deus estava conosco.

Lembrei-me do final de um livro do Hermam Melville.

Ah, humanidade!

Devia ter pego um táxi.

UM GRUPO DE TEATRO

Faço parte de um grupo de teatro. Mais: eu ajudei a fundá-lo. Já lá se vão 17 anos! Ano passado conseguimos alugar uma casa e a transformamos em nossa sede. A sede do grupo. Fica no Engenho Velho de Brotas. É um negócio meio estranho, porque o teatro não passa de uma plantinha sufocada pela terra e por onde todos passam, cospem e o sol castiga. e ela tenta crescer, resistente, infernizando a vida de todos. Mostrando que ainda é necessária, pois sem arte a vida seria um horror muito maior do que já é. Antigamente – eu não alcancei esse antigamente – ele (o teatro) era uma imensa árvore frondosa. Colegas se mantinham só com a bilheteria! Hoje está cada vez pior qualquer empreendimento teatral: o país vive num colapso total; qualquer projeto progressista que houve no passado foi transformado em pó diante de uma crise arquitetada e de um golpe baixo contra o que se chama fomento à arte, educação e cultura.  Mesmo assim a gente resiste. Porque somos isso.

A sede do grupo fica numa ladeira. É a rua Reis Príncipe, mais conhecida como Ladeira do Sapoti. Não me pergunte o fundo histórico desses nomes pitorescos. Reis no plural e príncipe no singular. Já o sapoti dizem que haviam sapotizeiros na beira do dique do Tororó, que fica em frente à ladeira. E só.

É uma batalha prover à criação artística o entrosamento com a comunidade local. O que me deixa encucado: um bairro tão cheio de artistas e culturalmente famoso; a negritude aflora no Engenho Velho com seus blocos afro, seus ensaios, os arrastões, quadrilhas etc. Mas talvez seja culpa do teatro, essa arte grega cheia de pompa e circunstância. Ou não. Não entendo como um teatro belíssimo e bem equipado como o Cine Teatro Solar Boa Vista não esteja repleto de moradores do bairro todos os finais de semana, todos os dias!, em apresentações, shows musicais, vídeos, cinema, debates e cursos. Talvez as pessoas não saibam – ainda – que a arte ao vivo é infinitamente mais empolgante do que uma TV ligada. O parque que circunda o teatro está à míngua. A população não usufrui do local e não o ocupa. Prefere bares e calçadas para educar seus filhos e filhas e netos. Mas o parque e o teatro ainda resistem. Passei ali parte de minha infância e adolescência. Ali vi o primeiro espetáculo teatral que não lembro o nome, mas foi uma peça para crianças e eu me encantei com aquele cenário colorido e os figurinos brilhantes.

Nós do GrupUsina somos de certa forma resistentes como o grande Cine Teatro Solar Boa Vista – e como tantos outros por aí. Pousamos ali naquela quitinete com varanda e fazemos nossos experimentos. Para sermos menos medíocres do que somos. Porque somos um brilho, porque somos amor, porque somamos à poesia, porque não nos conformamos. Porque somos artistas. Porque somos isso.

Um grupo de teatro.

 

LACRANDO

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Eu estava na Estação da Lapa. Agora o local é também um shopping center (mais um na cidade). Ao invés de pegar o metrô, resolvi pegar um ônibus. O subsolo estava lotado. Um calor abrasador. Por sorte consegui um lugar ao lado de uma moça que chupava um picolé.

Instantaneamente me deu uma vontade enorme de chupara também. Não o dela, é claro. Mas no coletivo só entravam vendedores de amendoim torrado e chocolates. Notei que a moça era bem jovem. Os cabelos pintados de verde e vermelho. Tinha um alargador enorme na orelha esquerda. Quase do tamanho de um pires.

Moço, ela disse me cutucando com o cotovelo. Desculpe incomodar, mas você sabe se lacre se escreve com c ou com k?

Lacre se escreve com C de carro, de casa, de ciumento, de casamento…

Ah, ela disse digitando no Smartphone.

Em seguida começou gravar um áudio dizendo que iria lacrar a rua inteira quando chegasse. Ela está pensando o quê?, disse me olhando. Eu sou bafônica!.

Perguntei o que significava ser bafônica. Claro que eu tenho uma ideia vaga do que seja, mas quis confirmar. Antes eu achava que era uma adaptação local do francês bas-fond, mas descobri decepcionado que significa outra coisa.

Que já chega lacrando!, disse ela.

Ah, então você vai lacrar sendo bafônica ou vai ser bafônica com um lacre?, indaguei.

Sei lá, ela disse. As duas coisas, porque eu sou isso!

Isso o quê?, perguntei curioso e segurando firme com medo de rolar pelo corredor do ônibus feito uma jaca mole (minha mãe que usa essa expressão). O motorista fazia curvas insanas em alta velocidade. Ou fazia curvas em uma velocidade insana? Ah, sei lá.

Passei as mãos nos meus pequenos brincos e olhei admirado para o pires (perdão, alargador) na orelha dela. Pensei: de fato, você lacra e é bafônica! Ou é bafônica porque usa essa tinta nos cabelos e esse alargador enorme. Ou é lacradora justamente por causa dos bafos que produz.

Levantou-se e pediu o ponto. Desceu com umas 20 pessoas. Olhei pela janela: andando devagar, trajando jeans, camisa e um colete de veludo preto, acuada no meio da multidão apressada ela não parecia lacrar em nada. Muito menos ser bafônica.

Era comum como aqueles granitos soltos na calçada. Esses sim são um verdadeiro lacre!

Que bafo!

 

DONA CAÇULA, REZAS E FOLHAS

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Noutro dia, descendo uma ladeira no Engenho Velho de Brotas, vi uma senhora “rezando” uma criança. Fiquei espantado: faz séculos que não via aquela cena. Instantaneamente viajei para a minha infância e lembrei de dona Caçula, uma senhora negra, baixinha, cabelos curtos, testa grande, mãos grossas, sempre sorridente e que morava em frente à minha casa. Era comum vê-la rezando crianças (em sua maioria) e adultos. Pegava algumas folhas na alvenaria próxima de sua casa e, ao ar livre, passava as folhas da cabeça até os pés, dizendo palavras que nunca consegui entender. Eu ficava olhando da janela. Tinha curiosidade e medo. Os pais das crianças sempre davam algum trocado a dona Caçula. Minha mãe dizia que em geral eram crianças com “olhado”, o famoso “olho gordo”, espécie de olhar negativo que compromete a saúde e o bem estar da pessoa olhada ou até mesmo objetos. Tem a ver com certa inveja. Crianças com diarreia era muito comum serem rezadas por dona Caçula. Se funcionava eu não sei. Mas a clientela era razoável.

Lembrei de uma festa em que eu me encontrava (muito recentemente) ostentando um colar que ganhara de presente. Duas pessoas elogiaram o objeto em volta de meu pescoço. Uma delas chegou a tocar nele. Por obra do acaso ou fruto de mau olhado, quando cheguei em casa o colar se partiu. Assim, do nada! Preferi não dar asas à imaginação. Lembrei das rezas de dona Caçula e refiz o colar no dia seguinte. Aqui na Bahia esse sistema é cultural. Rezas e passes ocorrem a três por quatro nas casas de pessoas comuns e nos templos religiosos, sejam de origem cristã, de religiões orientais ou africanas. Todo mundo sente a necessidade de uma ajudinha espiritual para aliviar seus sofrimentos e aplacar a dura caminhada. Vejo isso comumente nas igrejas neopentecostais, mais ainda que nas varandas das casinhas com pessoas devotas das religiões de origem africana. Parece que o uso benéfico da fé se inverteu. É o capitalismo. As rezas se organizaram em grandes templos com trocados sendo descontados através de débito em conta.

Sinal dos tempos, dona Caçula.

CAFÉ DE PADARIA

Ontem fui tomar café na padaria da esquina; em geral sou muito chato com cafés; em geral sou muito chato com muita coisa além do café. Poucos sabem fazer um bom café. É uma ciência, uma espécie de feitiçaria. Ponto. Mas nesse dia fui tomar café na padaria da esquina, cuja intimidade com os funcionários é enorme, afinal de contas compro pão e leite ali faz uns vinte e cinco anos.

Acontece que o acontecimento banal poderia ter continuado assim, banal, se não fosse por três senhoras que adentraram o recinto.

          – Me vê um quilo de carioquinha, disse a primeira e mais baixa para o balconista. Comecei a perceber que o dia não começara bem.

          – Não é carioquinha, é cacetinho, disse a outra de vestido vermelho e cabelos presos em um coque. O coque preso por uma espécie de rede com um laçarote por cima.

          – Nem uma coisa e nem outra, chama-se média ou pão francês, acudiu a terceira, uma negra de pele sedosa, óculos e uma indefectível boina (francesa, é claro!).

          Que trio, pensei com meus botões (estava de camiseta, um calor retado). Olhei para o balconista que estava meio sem jeito e quando foi pegar o saco de papel, a primeira interrompeu.

– Não adianta querer me envergonhar na frente dos outros, eu sei do que estou falando.

– Pois digo que é cacetinho, cada parte do país chama de um jeito!

– A parte do país que eu venho dá-se o nome de média.

– De onde eu venho chama-se carioquinha e ponto final!, disse a primeira estressadíssima. E eu olhando.

– Minhas senhoras, em primeiro lugar bom dia. Em segundo lugar, quantos quilos de pão as senhoras vão querer?

– Põe meio quilo de pão pra mim, falei ao Demétrio, o balconista.

– De macaxeira, mandioca ou aipim?, perguntou Demétrio.