Itan 2 – POR QUE AS MULHERES NÃO PARTICIPAM DO CULTO DE EGUN?

21

Em um dia muito importante, em que os homens estavam prestando culto aos ancestrais, com Xangô a frente, as Iyámi Ajé fizeram roupas iguais as de Egungun, vestiram-na e tentaram assustar os homens que participavam do culto.

Todos correram mas Xangô não o fez, ficou e as enfrentou desafiando os supostos espíritos. As Iyámi ficaram furiosas com Xangô e juraram vingança.

Em um certo momento que Xangô estava distraído atendendo seus súditos, sua filha brincava alegremente, subiu em um pé de Obi, e foi aí que as Iyámi Ajé atacaram, derrubaram e mataram a Adubaiyani filha de Xangô que ele mais adorava.

Xangô ficou desesperado, não conseguia mais governar seu reino que até então era muito próspero.

Foi até Orunmilá, que lhe disse que as Iyámi é quem haviam matado sua filha. Xangô quis saber o que poderia fazer para ver sua filha só mais uma vez, e Orunmilá disse para fazer oferendas ao Orixá Iku (Morte). E assim Xangô fez, seguindo a risca os preceitos de Orunmilá.

Xangô conseguiu rever sua filha mais uma vez, e pegou para sí os mistérios de Egungun (ancestrais).

Estando agora sob domínio dos homens este culto e as vestimentas dos Eguns, tornou-se estritamente proibida a participação de mulheres. Caso essa regra seja desrespeitada, provocará a ira de Olorun, Xangô, Iku e dos próprios Eguns.

Este foi o preço que as mulheres tiveram que pagar pela maldade das Iyámi, suas ancestrais. E assim é até hoje.

OXALÁ, JORGE AMADO, MONTEIRO LOBATO e pró MARIÁ DO ENGENHO VELHO

3009lobato

Eu queria falar de um itan (uma história tradicional que faz parte da mística e da cultura iorubá) sobre Oxalá, orixá funfun, orixalá, do branco e da paz. Mas estava conversando com um amigo sobre literatura, a conversa descambou para o racismo na literatura; aí Monteiro Lobato baixou no terreiro. Aquela história medonha em que ele chama tia Nastácia de “macaca de carvão” dentre outros epítetos racistas e tenebrosos. Além de racista, Monteiro era eugenista.  Sempre fui fã da literatura de Monteiro, inclusive fui alfabetizado lendo os livros dele, em lições que a professora Mariá (uma negona alta e corpulenta que vez ou outra vejo no Engenho Velho e nos cumprimentamos com doçura) tomava todos os dias final de tarde. Ai de quem não soletrasse ou lesse tudo direitinho: Nê-á-si, Nas; tê-á-,tá; cê-í-, ci; á; Nastácia. Claro que naquela época passava batido o discurso do combate ao racismo, a mediação de leitura e a formação de professores para esse tipo de discussão em sala de aula. Meu amigo se mostrou horrorizado e decepcionado com Monteiro e Jorge Amado. O primeiro pelos motivos óbvios e já citados. O segundo em especial pelo livro Gabriela, Cravo e Canela; primeiro pelo título, que coloca a mulher como objeto e coisa comestível (acho que foi isso) e segundo pelo enredo, que a coloca como objeto sexual (acho que foi isso).

Argumentei que não, que Jorge coloca as mulheres negras e comuns como heroínas e donas de seu destino; que ele mostra que a mulher é dona de si, que pode escolher com quem se deita e ama. Disse que entendia Gabriela como uma força da natureza, que não contém em si os julgamentos estabelecidos pela sociedade nossa hipócrita, que abafa o desejo em detrimento das convenções sociais. Que mesmo casada, ela decide transar com Tonico. “Eu nasci assim, eu cresci assim/ eu sou mesmo assim/ vou ser sempre assim/ Gabriela, sempre Gabriela”, ponderei citando os versos de Dorival Caymmi que tão bem retratam aquela personagem. Lembrei que Jorge era comunista, amava, andava entre e escrevia sobre os despossuídos, o povo, a gente comum, os colocados à margem pela sociedade capitalista e injusta.

Rimos muito, chamei ele de “dramática”. rimos de novo.

Sobre Monteiro a conversa foi mais chata, afinal de contas eu acho que os livros não devem ser proibidos, mas discutidos em sala de aula, que precisamos de professores fortes e atentos para as discussões; precisamos de leitores em sala de aula formando novos leitores e discutindo esses temas escabrosos, terríveis mesmo. O preconceito, o racismo, a homofobia, o machismo e a hipocrisia, além de política e direitos do trabalhador a meu ver devem ser sempre os temas principais em discussões em sala de aula. Respeitando a pluralidade de opiniões e “opiniães”, tendo o professor como mediador dono também de suas ideias e opiniões. Todos tomando partido e formando o conhecimento. Os escritos de Lobato devem ser entendidos à luz de seu tempo e dos nossos dias. Um contraponto, uma crítica, um espanto, um assombro e um deleite. Como foi a conversa que tive ontem com meu amigo via whatsApp.

Consigo ter uma leve ideia de como deve ser ruim para uma criança negra (mas também uma criança branca, porque vai formando um pensamento péssimo sobre a outra pessoa por causa da cor) ler aqueles termos medonhos nos livros de Lobato. Sou contra as notas das editoras porque guiam o pensamento e a leitura sem uma reflexão crítica, além de “entregar” a história e seu enredo, fazendo perder o encanto da surpresa. Isso em minha modesta opinião é arte para o professor. Tocar nos assuntos espinhosos e desagradáveis.

É isso a vida.

Quando topar com professora Mariá pelas ruas do Engenho Velho vou perguntar se ela lembra das lições com os livros de Monteiro. E o que ela acha do escritor racista e eugenista. Espero que renda um bom papo.

A vida é isso. Também.

 

(A charge nessa postagem é de Quinho, encontrada na internet)

Yansan e Ossãe – Itan 1

folha-eliptica

Esse itan, aqui adaptado por mim originalmente para o espetáculo Usina Griô, do Grupusina de Teatro, do qual faço parte. Foi uma pesquisa que fizemos sobre a mitologia dos orixás do candomblé e resultou naquela encenação.

Desde sempre, Ossãe conhecia o segredo de todas as folhas; quem lhe deu esse dom foi Olorun, o criador supremo de tudo o que existe.

Por isso, Ossãe se gabava e se aproveitava de seus poderes. Quando um de seus irmãos orixás ia em busca de uma folha para curar um de seus filhos, Ossãe sempre criava um obstáculo:

– Venha amanhã! Estou muito ocupado.

– Você quer folhas numa hora dessas? Estou com sono, venha depois.

– Você não avisou que vinha. Não posso te dar folha nenhuma agora!

Os orixás começaram a ficar intrigados com aqui, ficaram muito zangados porque seu irmão Ossãe lhes negava vez ou outra as folhas e somente ele sabia o segredo delas. Então, a pedido de Xangô, deus do trovão, eles se reuniram para resolver a situação.

Isso não pode ficar assim!, disse Xangô soltando fogo pelas ventas. Nosso irmão sempre arranja uma desculpa para nos humilhar quando precisamos das folhas!

Ontem mesmo eu precisei de algumas folhas para curar uma doença de um filho meu e não consegui porque ele disse que já era tarde!, disse Oxum revoltada.

Mas foi nosso pai Olorun quem deu o segredo delas para ele, Ele sabe o que faz!, disse Iansan.

Mas ele tem a responsabilidade de dividir as folhas com a gente, somos seus irmãos e irmãs!, disse Oxóssi.

Xangô teve a solução: pediu que Iansan fosse até o local habitado por Ossãe e pedisse a ele que dividisse com todos os segredos das folhas. Iansan era hábil com as palavras, saberia negociar muito bem.

Iansan assim fez, concordando com a ideia de seu marido Xangô. Chegando à porta da habitação de ossãe, pediu agô!

Iansan –     Ê Ê ewe ô!

Ossãe –      Eparrei!

Iansan –     Agô Ossãe

 E então, o que quer de mim minha irmã?

Meu irmão, vim te pedir agô, licença, e trazer um recado de nossos irmãos. Todos estão zangados porque você se nega muitas vezes a nos dar as folhas que precisamos para atender os pedidos dos nossos filhos humanos, a quem cuidamos e protegemos. Nos reunimos e decidimos que eu deveria vir aqui te pedir para que divida com todos nós o segredo das folhas, assim não precisaremos mais te incomodar.

 

Ah, dito isso, Ossãe se revoltou, ficou furioso.

Jamais! Quem me deu o segredo das folhas foi nosso pai Olorun. E eu não dividirei com ninguém. Nem hoje e nem amanhã! Portanto pegue seu caminho de volta minha irmã e dê o meu recado.

Ah, quando ele disse isso, tão cheio de si e de orgulho, Iansã ficou revoltada com a desfeita. Sacudiu sua saia, provocando uma ventania e um redemoinho tão grande que abarcou todas as folhas de todas as árvores de todas as florestas; todas as folhas se desprenderam dos galhos e se misturaram. Ossãe ficou aflito, corria para lá e para cá gritando Ewê ô! Ewê ô!, que significa Oh, folhas, Oh, folhas! Mas as folhas não obedeciam mais o seu comando, eram levadas pela força dos ventos de Oiá, a rainha dos ventos. Então os orixás vieram e cataram as folhas, cada qual de acordo com sua personalidade e finalidade. Exu por exemplo pegou urtiga e outras mais ardidas; Oxóssi pegou alecrim e manjericão, Ogum a que mais se parecia com sua espada; Yemanjá as que se pareciam conchas e assim por diante. E foram embora.

Ossãe ficou muito triste com o que aconteceu e decidiu ir pedir desculpas a seus irmãos.

Meus irmãos… Quero pedir desculpas a vocês. Nosso pai Olorun me deu o segredo das folhas, mas eu deveria dividir com vocês e não negar como fiz.

Assim, surgiu o mais velho e mais sábio dos orixás, Oxalá e resolveu a questão.

– Meus irmãos, nós precisamos das folhas, mas somente Ossãe conhece bem o segredo de todas elas. Ele continuará sendo o guardião delas e toda vez que um de nós ou algum humano precisar de alguma, terá de pedir agô, pedir licença a Ossãe., disse Oxalá.

– E se algum humano não me pedir agô, licença, a folha não terá efeito algum.

 

Todos concordaram e disseram em voz alta:

Kosi ewe kosi orixá!

Sem folhas não há orixá!