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ARROTANDO NA CARA DO DIABO

FADO, performance de BBB Johannes Deimling – 2008

Hoje mesmo, vindo do trabalho, tive a infelicidade de pegar o ônibus lotado e fazer a viagem toda em pé! No metrô terei mais sorte e irei sentado por toda a avenida Paralela, aquela viagem entediante e deplorável por cima do que antes era uma jardim gigantesco na ex-avenida mais arborizada de Salvador, pensei com meus botões. Eis que de repente, não mais que de repente, entra no coletivo um evangélico, desses que pensam que Deus está com eles e só com eles, que só eles sabem da verdade, aliás, a verdade é só uma e está apenas entre eles. Eu pensei que ele fosse cego, ou fingia ser, pois falava o tempo inteiro com os olhos fechados, nunca se sabe o que vem desse povo. Pensei: oh Senhor, por que me castigas?

E começou a ladainha, que só terminaria em São Cristóvão, pedindo ostensivamente bom dia e fazendo as relações as mais absurdas possíveis. Saudou os católicos, umbandistas, candomblecistas, crentes, espíritas, kimbandistas, maçons e os de uma tal “sociedade secreta”. Disse que nem tudo o que está na Bíblia Sagrada foi inspirado por Deus, porque os homens escreveram a biblioteca de mais de 60 livros. Noventa por cento de seu discurso era sobre mulheres e sexo, essa gente só pensa nisso e naquilo! Disse que a escritura não impede que as mulheres usem calça, pois quando alguém diz lá que as mulheres não devem usar as vestes de homens não se referia a calças, pois naquele tempo elas não existiam. E que em algum lugar da escritura Paulo diz que as mulheres que usam véu não são putas, porque nalgum lugar diz que as putas tinham cabelos curtos, então Paulo as salvou de vender seus corpos e mandou que elas usassem o véu para se distinguir daquelas que continuavam na putaria. Pensei: os cabelos dessas mulheres não cresciam? E se elas sobreviviam com o dinheiro da prostituição, que agora iria mantê-las? Porque, obviamente não eram casadas! E assim foi, chegando a momentos de empolgação, com risos de escárnio e vergonha alheia por parte de muitos passageiros, em especial quando ele parecia falar naqueles idiomas estranhos que eles falam nos templos, idiomas esses que ninguém reconhece ou sabe o que estão dizendo. Para que serve falar em línguas e ter a revelação se ela nunca é traduzida para o nosso idioma? Houve um momento de lucidez, quando ele fez uma relação mística – me lembrou a física quântica e a lei da atração – com o episódio em que o ocupante da presidência do Brasil, o asqueroso Jair Bolsonaro, fez aquele gesto de arma nas mãos de uma criança. Lembra, meus irmãos, que depois daquele maldito gesto, ele levou a facada e aconteceu o atentado a tiros na escola em Suzano?, perguntou o pregador jogando a responsabilidade dos atos funestos no canalha presidente. No final, depois de muito gritar – algumas passageiras, duas ou três gritavam améns a todo instante, parecendo comungar daquilo tudo, no final ele teve a desfaçatez de pedir uma contribuição em dinheiro aos passageiros, pois era um homem santo que vivia de coletivo em coletivo pregando a palavra de Deus e precisava almoçar, comer alguma coisa, tomar uma coca-cola para arrotar na cara do diabo.

P.S.: O metrô estava lotado. Viajei em pé. Cheguei em casa exausto.

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JESUS CRISTO REINA NESTA SALA

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(A imagem com personagens tão repulsivas é mera ilustração. Não achei a autoria da foto)

Fui ao Ministério Público aqui de Salvador. Precisava entregar um documento. Gosto de andar de bermuda e sandália, o clima é propício para caminhar apenas de sunga e um copo dalguma bebida gelada nas mãos. Mas o local impede a circulação de pessoas trajando bermudas e fui obrigado a vestir calça e tênis.

Chegando lá, banhado em suor, fui recepcionado por um rapaz negro que, sem perguntar o motivo da minha visita mandou logo que eu fosse para o guichê tal.

Fui.

Lá o atendente pediu um documento e depois me devolveu com uma etiqueta adesiva indicando o andar e a sala que eu deveria ir. Quando me dirigia ao corredor um policial militar me abordou e um outro funcionário também, me disseram que eu deveria passar pelo detector de metais, que num compartimento eu deveria colocar chaves, moedas, Smartphone etc, etc…

Que inferno, aqui também. Não bastam os bancos?, pensei fechando a cara.

E também não é permitido entrar de boné, o senhor precisa retirar o boné e transitar lá dentro com ele nas mãos, disse o policial com aquele ar um tanto quanto arrogante e apático.

Quer que eu tire minhas lentes de contato também?, perguntei. Mentira, não uso lentes de contato.

É em respeito às autoridades, senhor, falou o funcionário tentando gentilmente me explicar.

É um absurdo, eu disse. Precisamos sair do século 19 e entrar no 21! Que coisa atrasada! Como pode um boné desrespeitar alguém? Qual afronta carrega uma pessoa trajando bermuda?

O policial deu as costas, antes afirmou que eu precisaria retirar o boné e apenas segurá-lo em minhas mãos.

Aí eu me controlei, mas o diálogo perdurou mais um pouco, com o funcionário tentando me convencer de que as autoridades merecem respeito.

A autoridade real e verdadeira é o povo. Estamos em uma república. Fajuta, mas ainda assim uma república, uma coisa pública, coisa de todos. A autoridade é o povo.

A legislação permite entrar com adesivos de partidos políticos?, perguntou o policial com aquele ar arrogante e ditatorial. Eu ia dizer que ele não passa de um vassalo do governador, mas aí me calei. O funcionário disse que não existe legislação para impedir uso de adesivo na roupa de um cidadão.

E continuamos: ele tentando me convencer de que a autoridade ali merece respeito (eu nem sabia que iria falar com alguma autoridade e que tipo de autoridade era) e eu tentando convencê-lo de que entendia a posição humilhante mas queria dizer que precisamos, todos nós, quebrar esses paradigmas, mudar essas leis e acabar com esse atraso de vida das nossas “instituições”.

Quem é autoridade? O Supremo? O Congresso? A pessoa que está ocupando a chefia do Executivo em Brasília? São essas as autoridades? Ele entendeu minha ironia e sorriu.

Subi.

Com o boné nas mãos e o cabelo todo assanhado. Eu não tinha me preparado espiritualmente e psicologicamente para aqui. Me sentia um louco. Mas assumi a situação. Respirei fundo. Um mar sem fim de corredores, portas e divisórias. Câmeras para todo lado. A sala era a 212. No andar elas iam até 211. E agora? Bati na 211.

Boa tarde. Por gentileza, onde fica a sala 212?

É aqui mesmo na 211, disse o funcionário, um coroa grisalho, barrigudo, de calça jeans surrada e camisa básica preta. Parecia um roqueiro que nunca conseguiu montar uma banda de rock e acabou ali naquela salinha do ministério público. Seria ele a autoridade?

Ele disse que eu precisaria preencher um formulário para entregar a folha de papel que tinha ido entregar.

Ele tentou imprimir.

A impressora não imprimiu.

Ele tentou novamente.

Eu me lembrei do cabelo todo desgrenhado.

A impressora imprimiu um documento que ele pedira de manhã.

Ele xingou a impressora e praguejou contra aquele tipo de tecnologia.

Ele me pediu desculpas.

Eu disse que não tinha problema, que eu também amo palavrões e adoro xingar.

(Aliás, todo tipo de obscenidade me atrai, eu pensei mas não falei pra ele)

O telefone tocou e ele atendeu.

Quando desligou, xingou novamente.

A impressora começou a imprimir um monte de documentos que não tinha nada a ver com o que ele havia pedido.

Ele puxou a tomada dizendo que estava de saco cheio, que estava sozinho, o colega dele fora fazer uma capacitação e ele estava ali me atendendo, preenchendo formulários, atendendo telefonemas que o infernizavam.

Ele abriu uma gaveta e pediu que eu preenchesse um outro formulário.

Eu preenchi e assinei.

Olhei para uma das paredes e em meio a quadros com reproduções toscas de Carybé e Van Gogh havia uma placa com a inscrição “Jesus reina nesta sala”.

Eu pensei: vou lá embaixo pedir ao funcionário que mandasse o policial arrogante lá em cima retirar aquela placa. Que a maior de todas as autoridades, a Constituição Federal, diz que o Estado deve ser laico, e sendo ali um órgão público, onde não se pode adentrar de boné ou bermuda, estava infringindo um artigo constitucional!

Meu pensamento fora interrompido com o funcionário perguntando se ganharíamos essa eleição.

Espero que sim.

Os fascistas não vencerão! Isso está me tirando o sono!, ele disse preocupado.

São uma ameaça, mas estamos na luta, eu disse.

Passe aqui na quinta feira para pegar o outro documento.

Na saída não vi o policial arrogante.

Nem o funcionário que tentara me convencer sobre o respeito às autoridades.

Coloquei o boné.

O sol continuava escaldante.

 

 

 

 

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PEITINHO

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Foi uma confusão na praça da Piedade.

Ninguém teve piedade da mulher que colocou os seios pra fora e começou a amamentar uma criança enrolada em uma manta.

Eu falava ao telefone e parei para observar a confusão: um guardinha reclamava que aqui era impróprio, que ali passavam família, que ela fizesse aqui noutro lugar.

Mas eu só estou amamentando, disse a negra.

Aqui não é lugar pra isso, minha senhora, disse o guarda naquele tom militar de imposição e um pouco de ameaça.

Me aproximei. Outras pessoas se aproximaram.

E a mulher com um seio exposto.

Um peitinho de nada, mas notei que minava leite.

Se a senhora resistir vou ter de autuá-la por desacato. (Ele não falou desse jeito, mas eu quis escrever assim, corretamente).

Mas eu não fiz nada, disse a negra.

Ela não fez nada, deixa a criatura amamentar, isso não é crime, peito não é genitália!, eu disse imaginando que ele soubesse a relação entre seios e genitálias.

Quem chamou o senhor aqui?, ele perguntou.

Eu sou um cidadão!, estou aqui para defender essa senhora.

É isso mesmo, nós mulheres não estamos aqui para receber ordens de homem nenhum!, disse uma senhora.

Abaixo a tirania dos machos!, gritou uma moradora de rua.

Mas não estamos falando em machismo, mas de atentado ao pudor.

Atentado ao pudor é essa sua calça apertada desenhando tudo aí na frente, disse a mulher.

Atrás também, eu pensei, mas não falei.

O policial sacou o telefone e começou a discar.

Vou chamar a viatura ele disse. Nesse momento a criança, que até então na havia se manifestado, começou a chorar. Botou a cabeça para fora do cobertor em que estava enrolada. Pasmo geral: era uma menina loira.

Onde você pegou essa criança?, perguntou o policial em tom de acareação.

Como assim onde ela pegou?, perguntei.

Você está me acusando? Ela é minha filha. Nasceu a cara do pai, a pele, o cabelo, tudo. Ele é pernambucano, mora aqui faz dois anos. Qual o problema, só por que sou preta?

Não senhora, não é isso, disse o policial.

É isso sim, disse uma travesti que também parou pra olhar a confusão.

E você é preto também!, gritou um mendigo que observava tudo quietinho.

Me distanciei um pouco e pensei: o Brasil inteiro está aqui.

Inteiro. Nu.

Ficaram todas e todos encantado com a criança loira sendo amamentada por um seio negro.

Nu.

 

Foto de Rodrigo de Oliveira.

 

 

 

 

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SE EU SOUBESSE EU NÃO DIRIA ou HISTORINHA SOBRE O ÓDIO

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Se pudesse eu não diria nada. Porque só lembro. Lembro da infância na igreja e lembro dos carnavais que não fui. Lembro do ladrão que entrou em nossa casa e ficou por isso mesmo. Lembro da empregada que nos roubou e para sempre nos fez falta. Lembro do pastor falando baixinho em nosso ouvido e dele gritando no púlpito da igreja. E papai premiando minha irmã mais nova porque ela tinha conseguido passar de ano. E eu fiquei sem prêmios porque havia perdido. E eu a odiei, um ódio envergonhado com todas as minhas forças. Eu tinha vergonha de Deus. Tinha vergonha de odiar e Ele ficar sabendo. Mas eu odiei a minha irmã com todas as minhas forças e queria vê-la morta. Ali eu entendi que a vida seria por mérito. Quem conseguisse correr e chegar lá primeiro era merecedor de tudo.

No final daquele ano o menino puxou a bolsa de uma senhora que passeava com o cachorro. Eu já era grandinho e entendia bem das coisas. Conseguimos pegar o rapaz e o amarramos no para choque do carro abandonado na esquina. Era um fusca velho, antes era vermelho, agora estava desbotado. O rapaz estava desesperado, tremendo de medo. Eu fui o primeiro a chutar sua boca. Me puxaram e começaram a esmurrar o rapaz. O negro gritava apavorado. Seu rosto estava deformado. Eu via nele a minha irmã e eu tinha vontade de arrancar seus olhos e sua língua. Mata! Mata!, eu gritava, mata esse filho da puta e todos gritavam até que alguém veio com a gasolina e jogaram na cabeça dele que gritava acho que por Deus, mas você não lembrou de Deus quando pensou em puxar a bolsa da velhinha seu filho da puta miserável, todo mundo escolhe e você está colhendo o que escolheu!

E agora ele era ainda mais preto por causa do fogo que se tinha apagado e ele não gritava mais, parecia um pedaço de madeira negra em brasa. Todos correram para suas casas, nós nos mudamos dali na semana seguinte. Em minha cabeça estava o mérito, a justiça que deveria ser feita e o negro cujo rosto não se parecia com nada e com todos. Eu só lembro. Se eu pudesse eu não diria.

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LIVROS E PUM

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Fui convidado a participar de um bate papo com escritores em uma biblioteca comunitária aqui em Salvador. A biblioteca fica no Retiro. Disseram: no começo da ladeira. Pedi um táxi. A ladeira do Retiro é gigantesca, uma das mais íngremes da cidade da Bahia.

Você ia se lenhar se descesse aqui, disse o motorista dando uma gargalhada. Esse povo indica tudo errado. Num calor desses, mesmo assim sendo seco (magrinho), você ia chegar lá todo suado!, completou.

Claro, claro, eu disse com um sorriso amarelo.

Chegamos.

Cheguei pontualmente.

Quando começou foi uma festa: crianças bagunçando tudo e adolescentes tímidos e curiosos; alguns roíam unhas.

Pensei: devem estar pensando: Nossa, um escritor de verdade aqui!

Pensei: não tem glamour algum, só a dor de trabalhar com as palavras.

Para mim é sempre uma tortura explicar por que escrevo, como surgem as ideias etc.

O processo criativo é um presente, um traço, uma nódoa, um desvio. É portanto um mistério.

Falei disso e de outros assuntos para uma plateia atenta de professoras, bibliotecárias, mediadoras de leitura, crianças e adolescentes. As crianças, quando eu falava do meu conto O sumiço do bolo ou Conto de ibeji, pareciam irradiadas pelos outros erês.

Quando eu falava de um assunto “sério”, uma das crianças peidou bem no meio da sala. Foi aquele constrangimento. As professoras ficaram com “a cara no chão”. Quebrei a agonia do momento falando que ibeji, orixá criança, também solta pum enquanto come bola branca e bebe água suja (ovos e refrigerante). E que todos mundo presente ali na sala soltava pum, inclusive eu.

Rimos muito. E foi assim a fala sobre processo criativo, livros, literatura, bibliotecas comunitárias, direito de ler, democracia, política, infância e juventude, candomblé e outros temas.

DEUS, PÁTRIA, FAMÍLIA

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Depois da farra, do desbunde, das bebedeiras e excessos tão necessários à festa momesca, a realidade: O trabalho, as dívidas, as pequenas delícias da vida, a mediocridade, Deus, a Pátria estuprada e a família.

Oh, que delícia!

Essa última me causa espanto. Lembro de uma história que um velho monge me contou num retiro pseudo espiritual e totalmente turístico que fiz anos atrás. As pessoas não paravam de fotografar. Todos os cantos da mesquita eram violentados por luzes dos flashes e pelas perguntas mais infantis possíveis dos presentes. Eu também vez ou outra era seduzido por isso tudo, que não sou de ferro! Quando os outros se adiantaram, decidi me atrasar e fazer uma pergunta a um velho monge que meditava. Ele havia se espreguiçado e levantou-se. Foi quando eu ataquei com meu inglês parvo.

Perguntei-lhe sobre uma imagem que aparentemente retratava uma família numerosa. O monge respondera que sim, era a representação de Deus, de uma possível pátria e de uma família. E me contou uma história milenar (segundo ele):

Deus, ou Deusa, nunca saberemos se é homem ou mulher, em nossa necessidade de antropomorfizar tudo e todos, não precisava reinventar-se, Ele era a invenção e a reinvenção de Si mesma, sem mais. Então decidiu criar o conceito de pátria. Mas antes criou todos os seres, inclusive nós humanos. (Eu olhava para o monge muito atentamente, vez em quando esboçava um leve “unrrum” fazendo cara de coerência) A partir daí, o ser supremo quis ter a opinião de seus ministros, espíritos infinitamente menores que o Criador. Chamou Oxalá, Buda, Jesus e todos os coros de querubins, serafins e potestades. Fiquei assombrado com aquilo tudo. Uma entidade celeste daquelas poderia acabar com tudo o que entendemos como mundo e humanidade. Imagina o coro todo reunido! Outro unrrum. O monge continuou:

O Ser Supremo decidiu criar um local amplo onde pessoas com as mesmas afinidades pudessem morar.  Um querubim perguntou a Ele se não seria melhor criar pequenas “células” e em seguida um ajuntamento delas, que, numerosas, dariam origem ao que Ele queria: a tal pátria. Foi aí que tiveram a ideia de criar a família. As pessoas criadas poderiam unir-se num matrimônio e procriar, dando origem a um lanço eterno de ascendentes e descendentes. As pessoas de amanhã descenderia de uma pessoa de hoje, que seria seu antepassado. As criaturas poderiam também reinventar a ideia original a seu modo, criando novas possibilidades, imitando o Senhor, disse um serafim.

Deus ficou animado com a ideia e bateu o martelo. Sua animação fez nascer cerca de dois trilhões de estrelas e milhões de cometas mudaram suas órbitas para marcar aquele acontecimento! Estava criada a ideia original de família e futuramente uma pátria!

Mas quem administraria tanta gente lá embaixo?, perguntou Deus franzindo o que poderia ser uma testa.

Todos fizeram a mesma pergunta.

Estava instalada a confusão: eles não poderiam se intervir, não poderiam governar as criaturas.

E agora? Quem teria a solução?

O monge parou para beber água em uma cuia de barro e me ofereceu um pouco. Eu aguardava ansiosamente pela solução divina, enquanto espiava meus pares turistas indo longe em meio a flashes e autorretratos em cada canto, em cada coisa.

 

(Continua…)

 

Foto: detalhe de obra de Joan Miró.

 

 

PETRALHA

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Fui convidado por uma escola particular para dar uma palestra sobre literatura e produção independente. Sempre sou convidado a falar de coisas que não entendo completamente. A criação artística é e sempre será um mistério. Por isso que é coisa boa, penso. E sobre independência… Bem, todos nós artistas brasileiros somos independentes, sob certo ponto de vista…

A escola não gosta de ser chamada de escola, prefere “instituição de ensino”.

Então eu fui convidado por uma instituição de ensino particular ou instituição particular de ensino para proferir uma palestra – que chamei de bate papo – sobre produção artística e independente. Era uma sala enorme, púlpito sobre um pequeno tablado, iluminação geral com um foco em destaque para a minha pessoa. Devia ter pelo menos 100 adolescentes, além de professores e alguns funcionários entediados.

Senhor, me ajude, pensei ajeitando a gola da camisa e adquirindo um falso ar de segurança e seriedade. Eu queria mesmo era correr dali. Fui ao tablado, peguei uma pequena caderneta com alguns apontamentos; aproveitei para olhar nos olhos das pessoas mais próximas. Quando eu era Testemunha de Jeová, nos discursos que proferia, me disseram para olhar logo nos olhos dos assistentes, assim o nervosismo se dissiparia. Nunca funcionou.

Alguns adolescentes começaram a rir e outros começaram a gritar: começa, começa!

Boa tarde a todas!, falei entusiasmado, sorridente.

Só tem mulher aqui é?, indagou um rapaz.

Um professor olhou curioso para minha cara.

Gosto de cumprimentar assim, porque em todos os tempos utilizamos o masculino e as mulheres se sentiram representadas. Por que não falar no feminino e nós homens…

Você é de esquerda?, gritou alguém lá do fundo.

Sou. Mas o que isso tem a ver pessoal?, perguntei antevendo confusão. A esc, a instituição me convidou para falar sobre produção literária. Apesar de não ser um autor muito conhecido, tenho uma grande produção dramatúrgica que é admirada por muitos artistas, lancei quatro livros e estou prestes a lançar outro de poesia e…

Nesse momento uma moça de óculos interrompeu:

O senhor acha que esse governo faz alguma coisa pela arte e pelos artistas?

Acho que não. Acho esse governo um equívoco; não estamos mais em uma democracia, mas numa ditadura escancarada. Educação e Cultura foram lançadas no esgoto, falei com convicção.

Mas tenho em mim todos os sonhos do mundo, emendei tentando fechar com chave de ouro a discussão e partir logo para a dita palestra e partir o mais rápido possível dali. Amo debates e discussões que se aprofundam sobre os mais variados temas, mas aquela posição de destaque sobre um tablado e debruçado em um púlpito me incomodou por demais. pedi um copo com água a uma professora que estava logo á minha frente.

Uarlen, disse um rapaz negro levantando a mão. O senhor acha que Jorge Amado era mesmo comunista?

Além de ser chamado de senhor a todo momento, me incomodou o nível das perguntas, todas sem nexo, parecia que foram sorteadas ao acaso no universo. Ao nível dos achismos.

Sim, ele era comunista, ele afirmava isso, inclusive foi membro do partido comunista!

A professora me trouxe a água, tropeçou no tablado e derramou em minha calça, pedindo mil desculpas, botando a mão no rosto morta de vergonha. Correu e puxou um lenço da própria bolsa. Passou na minha perna, mas não resolveu quase nada. A maioria dos alunos dando gargalhadas. Uma minoria pedindo silêncio, uma parte teclando nos iPhones e quase todos fotografando e filmando.

Ah, meu pai, devo estar ao vivo para todos os continentes!, pensei sorrindo amarelo para a professora que retornava com outro copo com água.

Bebi.

Então, continuando, a produção independente no Brasil é muito ampla e variada. Escritores que lançam suas produções em blogs e sites, outros editam literatura em formato de folhetos de cordel, editoras online que imprimem livros sob demanda e…

Fui interrompido por uma professora:

Em seu recente livro de contos o senhor aborda um pouco a negritude e os temas das religiões afro brasileiras. num país cristão, isso é mesmo relevante?

Respirei fundo.

Sim, é relevante, o Brasil é um país plural. É necessário abordar essa pluralidade, a beleza que há nisso.

O senhor acha que o Lula fez um bom governo?, indagou um professor de casaco amarelo.

Acho, disse fechando a cadernetinha com apontamentos.

O senhor não acha que foi um governo assistencialista?

Não, foi um governo que priorizou distribuir renda. Apesar de muitos defeitos, erros e equívocos, é preciso admitir. Mas foi um bom governo. É uma opinião pessoal, mas voltando…

Uarlen, gritou uma menina encostada à porta. Já te chamaram de petralha?

Todos riram. Uns aplaudiram.

Não.

Então você é petralha?

Respirei fundo, pus a cadernetinha no bolso, bebi o resto da água gelada que estava no copo de vidro.

Olha gente, foi ótimo estar aqui. Sou artista, sou de esquerda e se quiserem sou petralha também! O tema da palestra é; como ser artista e petralha no Brasil!

Silêncio total. Respirei fundo. Me aproximei do microfone.

E quem estiver incomodado pode se retirar!

Ou se quiser vai pra Cuba!

 

 

 

 

 

A ROCHA

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Estava desolado.

Sentou-se no degrau da escada e olhou as árvores que balançavam. Que tédio, murmurou limpando o suor da testa. Se achava o mais injustiçado de todos.

Não passava ninguém àquela hora. Percebeu passos. Virou-se para a direita. Ele chegou pela esquerda.

Tudo bem? Quanto tempo!, disse sentando-se a seu lado.,

Oi, quanto tempo… que faz por aqui?

O outro começou a chorar. Fazia tempo que não chorava. Que fazia ali? nem ele sabia. Estaria à espera de algo. Sentia-se como areia. Não como areia, mas como pó à mercê das tempestades de vento. Seria levado embora a qualquer instante. perdera a graça e com ela a fé.

Nas pessoas?

Em tudo, diria, mas preferiu emudecer.

O outro entendeu e torceu os lábios respirando fundo.

Que poderia fazer sentindo-se pó? Esperar por um milagre? Fingir, e fingindo enganar a si mesmo e nunca aos outros? Como escapar daquilo que está atado á própria existência? Seria de fato a vida um rosários de sofrimentos? Por que Deus, em sua infinita sabedoria, não reservara as piores desilusões e desconfortos aos iníquos e desleais?

O outro olhou mais uma vez as árvores: estavam quietas. E em sua quietude revelavam o segredo da vida: mortal. Por isso aprender e viver era urgente. Essa coisa de amar era possível. Mas sem dor. Sem dissabores. Tudo acontece ao mesmo tempo. Agora. Tudo vem de vez como uma onda gigantesca onde a única saída é mergulhar para dentro dela. Como quem retorna para um útero frio e salgado. Era isso: ao mesmo tempo. As ondas que se avolumam, o deserto que espalha areia, as folhas que caem, a torneira que goteja, a menina que chora a falta da boneca, o relacionamento que se foi partido, o começo de outro ciclo astrológico lá no cosmo interminável. Tudo acontece ao mesmo tempo como numa grande orquestra. Onde não podemos regê-la. Apenas conformar-se. E sendo conformistas gozar ao máximo esse destino.

Era falta de ânimo para continuar a corrida, disse o amigo recém chegado.

Olhou para o relógio de ponteiros dourados. Percebeu de súbito que aquilo era muito cafona. Não se usa mais relógios de pulso de ponteiros dourados. Nem ponteiros! Que egoísta ele era! O amigo ali desolado, partido em milhões de pedaços e ele pensando na cafonice de seu relógio. Sentiu-se humano. Pensava que o outro que era forte, um rochedo.

Mas até os rochedos se fendem ao crepitar de uma broca potente ou ao compasso incansável de gotas de água. A vida é maligna de tão bela, não pensou, mas sentiu. E sentiu que deveria dizer ao amigo que o tempo. Só o tempo criaria aquele cascão da ferida. E depois viria aquela coceira gostosa ao redor da chaga, pois é possível sentir prazer na chaga. Que após um tempo estaria desfeita. Feita novamente a pele pronta para um novo corte.

É o que se chama vida.

Tudo ao mesmo tempo.

Olhou as árvores: imóveis.

 

 

 

PEREGUN

 

Esse itan foi adaptado por mim para uma oficina onde contei algumas histórias sobre mitologia de orixás.

Peregun queria ter sorte, mas não conseguia. Então ele foi consultar Ifá.

Ifá, quando Pèrègún o procurava pela sorte, disse: “Pèrègún, se você quiser ter sorte, deverá ajudar a humanidade, fazendo um pacto com Ajé (Yiámi Osorongá, orixá mãe, respeitosa, da prosperidade e da sorte), para poder sempre ter e poder emanar sorte, para quem lhe procurar por sua ajuda.

Foi então, que Pèrègún tinha feito pacto com Ajé antes de vir ao mundo, mas não tinha quem o pudesse levar para Àiyé (Mundo terreno, a Terra).

Novamente foi a Ifá, e este dissera: “Pèrègún se você quiser realizar o seu trabalho em Àiyé procure por “Ògún”, pois ele sempre está indo para Àiyé.

Pèrègún procurou por “Ògún”, mas ele só levaria Pèrègún, se ele dividisse a sua sorte com ele.

Foi então que Pèrègún tinha aceitado, e por essa razão “Ògún” lhe dissera: “Vou dizer a toda humanidade, que Pèrègún emana a sorte, e quem com ele ficar será agraciado com a mesma”.

Desde então Pèrègún então foi conhecido, e muito procurado por todos em Àiyé.

Com Peregun, a sorte de nossos opositores fica a nosso favor. Mas para ter sorte, precisamos agir como Pèrègún: ter fé e trabalhar!

Peregun aqui é também conhecido como Nativo.

 

Ifá – Orixá da adivinhação e do destino. É o porta voz de Olorun.

Olorun – O Deus Criador, O Todo Poderoso, criador de tudo, inclusive dos orixás.

Ajé – Senhora da morada da sorte e das realizações dos humanos.

Aiyé – Palavra de origem iorubá que significa Terra, mundo terreno; paralelo ao Orun, mundo espiritual.

DOIDINHO

 

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Ladrão que rouba ladrão não tem.

Mas os loucos sim.

Deus sempre perdoa os doidos, porque eles não fazem por mal. As sandices destoam do cotidiano travado a que estamos acostumados, cerceado por regras, leis e preceitos morais. O loucos não – quebram as regras e arejam o dia ao passar nu em frente à minha casa. Verdade. Uma senhora passou pela minha porta duas vezes completamente nua, rebolando, com as sandálias nas mãos. Com ares de Sônia Braga ou Sharon Stone na pele de suas personagens belas e sensuais. As vezes ela – que não sei o nome – passa gritando impropérios os mais variados. Isso altas horas da madrugada!

Ainda hoje, passeando pelo bairro com minha cachorra Liuba, me deparei com um deles – misto de doido e bêbado – levando grades de cerveja em um carro de mão. Com aquela energia incontrolável, misto de fúria e alegria, gritando e cantando dizendo que é o maior capoeirista do bairro. Parou para gingar um pouco, com golpes com as pernas sobre o carro de mão, como se aquele fosse seu adversário no belíssimo jogo da capoeira, nosso patrimônio imaterial. Não é que o danado sabe mesmo jogar? Tentei fugir, para que Liuba não invocasse com ele e vice versa mas não teve jeito: ele me viu, perguntou como eu estava, disse que meu pai é o maior cabeleireiro (barbeiro) do bairro (Ele e Elias, um barbeiro da geração de meu pai que fechou sua barbearia recentemente, se aposentou; meu pai é igualmente aposentado, mas prefere continuar na ativa).

Eles são assim: a doença os acomete no terreno do consciente; a inconsciência fica intacta, operando nas lembranças, na capacidade de não rasgar dinheiro, de se atentar com os veículos no trânsito e não morrer atropelado etc. Li isso em algum lugar e ouso falar aqui de coisas que não tenho certeza. Alguém me corrija se eu estiver errado.

 

Não estou aqui romantizando ou achando graça quem tem distúrbios mentais – creio que todos nós temos -, mas fazendo apenas um pequeno recorte daqueles que conseguem fazer algum gracejo e trazer encanto para o nosso cotidiano com suas tiradas incríveis, suas lembranças, a forma como bagunçam nossa ordem chatíssima estabelecida. Não posso deixar de denunciar certo descaso dos nossos gerentes (ou ingerentes) com a saúde pública em especial com os que sofrem de distúrbios mentais. Em todos os bairros essas pessoas lotam as ruas; estão por esquinas, pelos montes de lixo, confundem-se com alcoólatras e mendigos ou são isso tudo ao mesmo tempo. é uma tristeza ver tanta gente com a sorte traçada pela falta de interesse dos nossos representantes. Estamos todos, todos numa nau de loucos, todos no mesmo barco.

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Ou como disse a grande Nise da Silveira: “Para navegar conta a corrente são necessárias condições raras: espírito de aventura, coragem, perseverança e paixão“.

É preciso se aventurar,

É preciso ter coragem,

É preciso ter perseverança,

É preciso ter paixão, dona Nise.

E vergonha na cara para certos edis e chefes do Executivo.

Axé.