DONA CAÇULA, REZAS E FOLHAS

olho-gordo

Noutro dia, descendo uma ladeira no Engenho Velho de Brotas, vi uma senhora “rezando” uma criança. Fiquei espantado: faz séculos que não via aquela cena. Instantaneamente viajei para a minha infância e lembrei de dona Caçula, uma senhora negra, baixinha, cabelos curtos, testa grande, mãos grossas, sempre sorridente e que morava em frente à minha casa. Era comum vê-la rezando crianças (em sua maioria) e adultos. Pegava algumas folhas na alvenaria próxima de sua casa e, ao ar livre, passava as folhas da cabeça até os pés, dizendo palavras que nunca consegui entender. Eu ficava olhando da janela. Tinha curiosidade e medo. Os pais das crianças sempre davam algum trocado a dona Caçula. Minha mãe dizia que em geral eram crianças com “olhado”, o famoso “olho gordo”, espécie de olhar negativo que compromete a saúde e o bem estar da pessoa olhada ou até mesmo objetos. Tem a ver com certa inveja. Crianças com diarreia era muito comum serem rezadas por dona Caçula. Se funcionava eu não sei. Mas a clientela era razoável.

Lembrei de uma festa em que eu me encontrava (muito recentemente) ostentando um colar que ganhara de presente. Duas pessoas elogiaram o objeto em volta de meu pescoço. Uma delas chegou a tocar nele. Por obra do acaso ou fruto de mau olhado, quando cheguei em casa o colar se partiu. Assim, do nada! Preferi não dar asas à imaginação. Lembrei das rezas de dona Caçula e refiz o colar no dia seguinte. Aqui na Bahia esse sistema é cultural. Rezas e passes ocorrem a três por quatro nas casas de pessoas comuns e nos templos religiosos, sejam de origem cristã, de religiões orientais ou africanas. Todo mundo sente a necessidade de uma ajudinha espiritual para aliviar seus sofrimentos e aplacar a dura caminhada. Vejo isso comumente nas igrejas neopentecostais, mais ainda que nas varandas das casinhas com pessoas devotas das religiões de origem africana. Parece que o uso benéfico da fé se inverteu. É o capitalismo. As rezas se organizaram em grandes templos com trocados sendo descontados através de débito em conta.

Sinal dos tempos, dona Caçula.

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